Jerci Maccari

Tempo e ritual - Contribuição à antropologia da performance

17/12/2014

Tempo e ritual
Contribuição à antropologia da performance

Trabalho final

Disciplina: HZ466 A (Mito e Ritual)
Professor: Ronaldo de Almeida
Aluno: Matheus Capovilla Romanetto (RA 147366)

Introdução

O conceito de rito esteve, com frequência, associado à ideia de regularidade. Tanto do ponto de vista de sua organização interna, quanto do de sua posição na sucessão das práticas de um grupo, o ritual pode ser concebido como algo regido por determinados padrões, que tornam possível, segundo a constância de suas repetições, apreender o que há ali de perene. Aos participantes desse tipo de atividade são atribuídos valores e funções específicos; o curso do ritual se desenvolve em conformidade com uma estrutura social particular, que situa os seres e objetos em termos morais e jurídicos, delegando a cada um a missão de realizar este ou aquele feito, portar-se desta ou daquela maneira. Constata-se então uma regularidade da ação, na medida em que a configuração normativa do rito “prescreve maneiras de agir” (Durkheim 1996:19), e coordena a interação daqueles que a ela se submetem. A própria ação, por sua vez, sendo simultaneamente revestida de simbolismo, e orientada por ele, participa de uma regularidade de significação: constrói-se em torno de um “sistema adequado de símbolos públicos” (Geertz 2008:59), que atuam na codificação do rito, e em sua localização no contexto total da vida comum.

A continuidade dos quadros simbólico e normativo subjacentes às práticas rituais é uma das condições que viabilizam sua regularidade histórica – a maneira como elas são incorporadas à tradição coletiva, e passam a suceder em momentos e locais específicos, reservados para elas, originando, por assim dizer, certo compasso social, que marca a cronologia do grupo. Ora, a atenção aos componentes regulares dos rituais levou a algumas das mais belas análises de cunho estrutural – tipificadas aqui como aquelas em que a preocupação principal está em deduzir, da repetição dessas atividades, suas características constantes. O olhar estrutural dirige-se à empiria do ponto de vista da própria atividade; concentra-se sobre aqueles aspectos que a organizam como algo que excede, em alguma medida, a autonomia das ações, símbolos e contextos históricos particulares de seus participantes. Desde que esses elementos são passíveis de variação, porém, é preciso dar conta da maneira como o regular e o contingente interagem na realidade. Pode suceder que o significado original de um conjunto de práticas se perca, mas elas continuem vigentes de algum modo – e então nos deparamos com a dificuldade de estabelecer linhagens históricas das transformações da estrutura simbólica de um rito, como no caso do Natal de Lévi-Strauss (2008), cujas decorações remetem a signos oriundos do renascimento, e cujo Papai Noel descende de um farto conjunto de personagens (míticos e rituais), lançando-nos em direção a práticas tão distantes do cristianismo quanto as saturnais romanas. A diacronia desponta, então, como longa sucessão de sincronias, cada uma portando relações sistêmicas próprias entre seus elementos. Um problema mais próximo da escala temporal da vida cotidiana se dá na situação inversa: quando, preservando-se os referentes da significação, a ação se distancia do previsto, entrando em confronto com as expectativas prescritas pela norma. Sahlins (1990) já notara, analisando o caso do Capitão Cook entre os havaianos, como a assimilação de um desvio da ação por uma estrutura simbólica anterior pode levar a desfechos até mesmo trágicos. Algo disso já se prefigura em Turner, para quem “[o] mundo social é um ‘mundo in becoming’, e não ‘um mundo in being’” (2008:20) – isto é, a vida se dá como constante processo, e mesmo o que há nela de estrutural é “ancillary to, dependent on, secreted from process” (1988:84). A ênfase teórica se desloca, então, a título de tipificação, para o ponto de vista dos participantes da atividade estudada, em eventual contraposição à lógica interior a ela.

O tema clássico da oposição entre estrutura e agência, ou entre estrutura e processo, ultrapassa consideravelmente o restrito domínio do estudo dos rituais. O interesse em contemplá-los a partir dessa perspectiva é a maneira como, sendo eles fenômenos que condensam de maneira particularmente visível as marcas da regularidade na interação social, eventos de ruptura interiores a eles constituem situações bastante evidentes e ricas para o observador. Tive ocasião de refletir sobre uma situação como essa, por ocasião de algo que poderíamos chamar um rito cívico: a entrega do título de cidadão honorário a dois moradores de Valinhos (SP), ocorrida na Câmara Municipal da cidade, em novembro de 2014. No curso do texto, procurarei desenvolver os temas antecipados acima, a partir da análise de um componente singular dos eventos daquela noite: a execução de uma performance artística, por parte de um dos dois homenageados.

Análise preliminar
Eu não estava preparado, a princípio, para um registro metódico da cerimônia. Havia circulado pela cidade um panfleto indicando que, a partir de determinado horário, aconteceria a apresentação da Sociedade Filarmônica de Valinhos, a Soft Orquestra, no auditório da Câmara Municipal. Temendo que houvesse filas, ou qualquer outra dificuldade, cheguei mais cedo ao local, e só então descobri que a entrega dos títulos estava acontecendo. Acompanhei o evento de modo mais ou menos desatento, até que a referida performance chamou minha atenção, lançando-me em uma investigação mais detida das circunstâncias. Por sorte, pude contar, além de minha própria memória, com uma filmagem oficial executada pelo departamento de comunicação da Câmara, que me forneceu o acesso às gravações da sessão solene, e também a algumas entrevistas feitas com um dos dois homenageados. Foram essas, além de depoimentos de algumas pessoas presentes, as minhas fontes primárias.

Não é possível, de antemão, falar em uma “regularidade histórica” desse tipo de cerimônia, no sentido em que o empregamos até agora, pois a entrega dos títulos de cidadão honorário não acontece em função da época do ano. Ela depende de que haja proposituras de nomeação aceitas pelos vereadores. É, portanto, um rito cívico intermitente, dependente das circunstâncias políticas do município. Uma explicação sobre a natureza da honraria foi dada, nos instantes iniciais do evento, pelo mestre de cerimônias. Segundo ele, “[o] título de cidadão honorário é oferecido pela Câmara ao munícipe que realiza importantes ações voltadas à área filantrópica, em benefício da comunidade, não visando lucro ou interesse pessoal, mas sim demonstrando amor pela cidade e sua população, lutando pelo desenvolvimento de Valinhos”. Trata-se, portanto, de uma forma de reconhecimento público pelos empreendimentos passados do homenageado, que é então “equiparado a um irmão valinhense, adotado oficialmente pela comunidade local, de modo mais nobre, pelo coração”. Os dois agraciados da ocasião haviam sido escolhidos principalmente em função de suas contribuições artísticas. Um deles é músico, e empreendedor no ramo musical. O outro é artista plástico, e preside a orquestra que tocaria mais tarde na mesma noite.

No interesse de estudar a interação entre aspectos estruturais e contextuais da situação, seria necessário deter o acesso a registros de mais eventos da mesma natureza, com a finalidade de deduzir, de uma comparação entre eles, aqueles traços regulares que, por hipótese, prescrevem o curso do rito. Infelizmente, não disponho desse material. Sendo imprescindível oferecer um modelo da situação, entretanto, realizarei um movimento arriscado, similar ao de Leach (2000), que analisou a investidura dos cavaleiros britânicos a partir de uma única participação nessa cerimônia: abstrairei, do material observado e registrado naquela noite, o que suponho ser a configuração típica das demais sessões de entrega da honraria.

A composição social da noite podia ser dividida em oito grupos, representados na Figura 1. Havia, em primeiro lugar, o Presidente da Câmara Municipal (1), responsável por abrir e fechar a sessão oficialmente, além de entregar os títulos aos homenageados. Sentados ao seu lado, ao longo de uma mesa, num palco, encontravam-se três outros vereadores, e também o secretário de cultura de Valinhos (2), representando o prefeito, que se ausentara. A participação desse grupo na cerimônia consistiu principalmente em comentar a entrega dos títulos publicamente. Todos trajavam, assim como o Presidente, roupas formais – paletó aberto, gravata, camisa, calças e sapato –, com exceção do secretário, ligeiramente mais informal, com calças jeans e camisa, sem o paletó nem a gravata. Os dois homenageados (3) situavam-se à esquerda da mesa (do ponto de vista da plateia), em poltronas acompanhadas de uma mesinha. Tiveram o papel de receber efetivamente o título, e de discursar a respeito disso em seguida. Aqui, uma diferença já se insinuava: enquanto o músico trajava roupas ainda mais formais que as da mesa de vereadores (um conjunto inteiro preto, com o paletó fechado), o artista fora usando roupas casuais: um chapéu cinza, camisa polo de mangas curtas rosa, calça jeans e sapato.

Na extremidade oposta do palco, o mestre de cerimônias (4) coordenava, em um pequeno palanque com microfone, todas as ações coletivas. Foi o responsável por apresentar a natureza do evento, e intervinha em cada etapa intermediária sua, anunciando o que aconteceria a seguir, convocando as pessoas ao palco, conduzindo as explicações necessárias. Falava predominantemente de maneira impessoal, como porta-voz da Câmara. Poder-se-ia atribuir a ele tanto uma função organizacional, quanto uma pedagógica, na medida em que seus anúncios instruíam os que nunca haviam participado de uma cerimônia como aquela sobre o que deviam fazer. Ainda no palco, um conjunto de cerimonialistas (5) auxiliava, tão discretamente quanto possível, na organização do evento, o transporte de objetos etc. Todas usavam roupas formais.

No degrau mais baixo do auditório, a plateia preenchia dois conjuntos de cadeiras, com uma leve inclinação descendente entre as mais distantes e as mais próximas do palco. A participação do público (6) consistia majoritariamente em aplaudir nos momentos certos, com exceção de alguns conhecidos dos políticos e homenageados (7), que eram mencionados nos discursos proferidos durante a cerimônia, cumprindo o papel (passivo) de mediar simbolicamente o palco e os demais espectadores. Vários dos vereadores, nas sentenças iniciais do que diziam, selecionavam um ou dois amigos presentes, para “cumprimentar em sua pessoa” todos os demais. A composição dos trajes dos espectadores variava. Um conjunto de fotógrafos (8), enfim, situados à beira do palco, registrava o evento em silêncio.
Figura 1 – Configuração social da entrega de títulos
Figura 1 - Configuração social da entrega de títulos

O progresso da cerimônia – aquilo que poderíamos denominar sua estrutura processual, como função da regularidade da ação prevista – deu-se em onze etapas distintas. Na primeira delas, o mestre de cerimônias apresentou o evento e os homenageados. Em seguida, chamou o Presidente da Câmara ao palco. Este, por sua vez, convocou os demais vereadores para compor a mesa (ainda mediado pelo apresentador). Os dois homenageados foram, enfim, os últimos a subir. Num quinto momento, o Presidente abriu oficialmente a sessão, ao que se seguiu a entoação do hino nacional, e depois do municipal, com todos em pé e voltados a um conjunto de bandeiras, situadas à esquerda da mesa dos vereadores. Foram então exibidos, em um telão, vídeos expondo pequenas biografias do artista e do músico, e após isso, a entrega propriamente dita dos títulos – um par de cartas emolduradas, dadas pelo Presidente em mãos aos seus respectivos detentores (acompanhado, no caso do músico, pelo vereador responsável pela propositura da concessão da honraria), enquanto trocavam apertos de mãos e um diálogo breve. Foi dada, então, a palavra, a ambos os homenageados, para que discursassem livremente sobre a ocasião. Após o término do que disseram, cada um dos vereadores (incluindo o Presidente) tomou o microfone (alguns no palanque, outros na mesa), comentando suas relações com os novos cidadãos, parabenizando-os e tocando, eventualmente, em assuntos mais distantes. A sessão foi então oficialmente encerrada pelo Presidente, ao que se seguiram os preparos para a apresentação da orquestra.

Se tivéssemos de indicar, dentre esses momentos todos, quais são aqueles com maior suscetibilidade de alteração em relação ao curso esperado da cerimônia, talvez não fosse difícil apontar os dos discursos, tanto dos homenageados quanto dos políticos. Esses são os momentos de maior contingência potencial, dado que não há um controle prévio sobre o que cada parte vai pronunciar. De fato, a performance que eu vim mencionando, realizada pelo artista, foi executada no momento em que o microfone lhe foi dado. Ela estabeleceu de tal modo um contraste com o discurso do músico, pronunciado antes dela, que não pude me furtar a acordar de minha desatenção, e investigar o mais detidamente possível o que estava acontecendo.

Aqui, novamente a inexistência de material comparativo sobre a cerimônia prejudica a análise. Caso eu dispusesse dos discursos de vários homenageados, talvez fosse possível definir um conjunto de conteúdos típicos, tacitamente esperados, para se dizer na ocasião. Sem essa garantia formal, fico limitado a estipular o que acredito que constaria nesse conjunto. A definição da situação da performance como uma forma de ruptura fica, num primeiro momento, dependente de uma classificação visivelmente subjetiva. A justificativa para a manutenção dessa ideia é que, por um lado, o público todo demonstrou algum grau de surpresa em relação ao que presenciava; por outro, o contraste com as palavras do músico tornou visíveis os pontos em que a iniciativa do artista se desviava da norma provável. Assim, a título de mediação entre esta aproximação preliminar e a análise propriamente dita, esboçarei uma comparação entre os conteúdos de cada exposição. Não tive oportunidade de entrevistar o músico, assim como fiz com o artista, o que estabelece uma assimetria nas considerações a cada caso. Por isso, procurarei tratar com a maior fidelidade possível o conteúdo por ele proferido, tal como ficou registrado na gravação da Câmara.

O músico falava calmamente, de maneira pausada, gesticulando pouco. Seu primeiro movimento foi o de dizer “boa noite”, agradecendo a presença das pessoas, registrando o fato de que aquele era “um momento de muita emoção”. Disse que não havia preparado nada para dizer, pois gostava de falar assim como quando subia num palco para cantar: “Deixar minha emoção me dominar”. Boa parte do conteúdo seguinte foi de natureza biográfica. Havia nascido pobre, dizia – “pé de cana”, numa cidade de interior em que as únicas opções para sobreviver eram cortar cana, lavar batata, ou tentar uma vida melhor em outro lugar. Lá, no começo de sua trajetória, ele ouvia rádio e sonhava em ser músico: mas a vida o desafiava pelas limitações que impunha. Queria tocar na rádio – “Mas que jeito, cortando cana, né? Que jeito, buscando lenha no fogão?”.

Num breve interlúdio à narrativa biográfica, antecipava o fato de que estar ali era a concretização de algo longamente desejado, agradecendo aos que o apoiaram: “hoje, pra mim, a minha vida é a realização de um sonho”. Pôs-se então a narrar alguns eventos desde sua chegada à cidade de Valinhos, em meados da década de 1980, dirigindo-se em seguida a um dos vereadores presentes, responsável pela propositura de seu título, pois eram amigos de longa data. Contou histórias que os dois partilharam, e agradeceu à Câmara como um todo pela aprovação unânime da entrega da honraria. Dirigindo-se à plateia, escolheu um tio seu, que teve papel importante no início de sua carreira, como objeto de agradecimento particular, simbolizando o reconhecimento de todos os demais conhecidos presentes. Para fins de análise, uma de suas últimas frases é talvez a mais importante. Dizia o músico: “quando eu cheguei em Valinhos pé de cana, eu fui enxertado pelo pé de figo, e os meus frutos estão dando. Estou colhendo esses frutos. Hoje, eu me considero um pé de figo, e agora, com esta certidão de nascimento nova minha [apontando para o título]”. Em seguida, fez novos agradecimentos a todos, e despediu-se.

O fato de que o próprio orador afirma ter improvisado seu discurso é sugestivo diante de minha estratégia analítica – procurar estipular, de alguma forma, uma estrutura interna ao que foi dito. Não se pode perder de vista que o que apresento nas linhas seguintes é esforço interpretativo meu, desvinculado de qualquer pretensão de correspondência com a intenção subjetiva do músico sobre o que disse, ou com a visão das demais pessoas presentes. Não tenciono desvendar um sentido oculto em algo que pode ter sido perfeitamente espontâneo, mas sim buscar indícios do que faz daquele discurso algo condizente com as circunstâncias em que foi proferido. Pois que sentido há em fazer autobiografia; em agradecer as pessoas que fizeram parte dela, e falar sobre os próprios sonhos e realizações, no contexto de uma entrega de honraria municipal? O que torna tudo isso pertinente?

Acompanhando o discurso do músico, nota-se uma oscilação contínua entre o passado e o presente, em que ora se insinuam, ora se explicitam deliberadamente, os nexos que conduzem da história pessoal daquele indivíduo ao seu reconhecimento público pela cidade. A declaração de que aquele é um momento emocionante denota, de saída, aquilo que será durante todo o resto da elocução o pano de fundo que orienta a fala: a aceitação íntima da honraria, e da acolhida da comunidade que a entrega. Muito pouco da atuação pessoal do músico é enfatizado em sua narrativa de si mesmo. Praticamente o único momento em que há uma diferenciação notável entre ele e os demais participantes de sua história é o início da biografia, em que ele fala de suas próprias aspirações. A mudança principal que decorre entre aquele momento inicial de um sonho distante, até a realização desse desejo na atualidade, é atribuída, não a seu esforço pessoal, mas ao contexto em que o orador se encontra: antes, uma cidade pobre, com poucas opções; depois, Valinhos, onde há o apoio de todas as pessoas que o ajudaram no curso dos anos. Isso fica registrado de maneira particularmente eficaz na frase sobre o “pé de figo”. Ocorre que Valinhos é chamada a capital do figo roxo, um de seus principais produtos agrícolas. Afirmar a passagem de “pé de cana” a “pé de figo” executa, portanto, uma curiosa condensação de significados: ao mesmo tempo a passagem da pobreza à riqueza (“dar frutos”), e certa forma de enraizamento à nova terra – pois as imagens do pé e do enxerto remetem ao solo, onde afinal os novos frutos logram crescer. O ápice do discurso se dá, pois, na afirmação de certa forma de indiferenciação entre o músico e os demais cidadãos, no elogio dessa identidade que os reúne em torno de algo comum. E o título é uma “certidão de nascimento”. O músico nasce de novo, agora plantado no solo de seus conterrâneos, e passa a partilhar de sua marca.

No interior da estrutura processual da cerimônia, a principal função do discurso assim proferido, pode-se conjecturar, é apresentar uma declaração de próprio punho sobre qual é a posição do homenageado em relação ao conjunto de cidadãos que o recebe. Permitindo-nos uma abstração útil, trata-se de situar o indivíduo em relação à sociedade, tarefa para a qual a biografia e os agradecimentos tornam-se meios simples e úteis. Tendo recebido seu título, o homenageado conta uma história que justifica e confirma sua passagem ao estado de cidadão; movimento duplicado em seguida pelos discursos dos políticos, que reafirmam, um a um, a relevância do trabalho dos agraciados, e o merecimento de sua nova condição. Há aí, segundo penso, a expectativa de uma convergência entre a história do indivíduo, e sua assimilação pelo corpo civil que o inclui entre seus membros. Ora, é justamente na execução dessa função que a atitude do artista difere da do músico. Também sua performance culmina na demonstração de um posicionamento de si em relação aos demais, mas segue por uma trajetória muito diferente. Eis um esboço do conteúdo que ele apresentou, a ser detalhado adiante no curso do artigo.

A primeira metade do que fez o artista expressava, também, uma trajetória biográfica. Mas, para começar, ela não o fazia narrando oralmente as etapas de sua vida: antes as encenava. A performance intercalava pequenos trechos falados, lidos em um papel cuidadosamente preparado, a momentos de atuação, também planejados. Sua primeira sentença – proferida imediatamente após a entrega do microfone, sem maiores explicações – tinha um sujeito coletivo: “Nascemos analfabetos, carecas, sem escolher família, classe social, país, clima ou cultura”. Sucediam, então, ora momentos de silêncio, ora pequenas demonstrações, em que o artista ia registrando algumas das etapas de sua vida profissional. Ajoelhando-se com o terço em mãos, assinalava sua ida ao seminário. Vestido com um jaleco, com pincéis em mãos, aludia à carreira de artista plástico. Posando com o violino, era à vida de músico e gerente de orquestra que fazia referência. Todos esses eram conteúdos compreensíveis apenas em função da entrevista que a Câmara exibira anteriormente, em que eram mencionadas tais passagens de sua trajetória pessoal. Dos trechos proferidos nesse percurso, aquele que eu gostaria de destacar por agora é o mais curto: “Fiz escolhas. Busquei caminhos”. Ele registra o mote principal dessa parcela da apresentação, por razões que ficarão claras em breve.

A segunda metade da performance abdicou da encenação, preservando uma estrutura similar à parte dialógica do momento anterior: frases incisivas, um tanto misteriosas por sua alusão a contextos que apenas as pessoas mais próximas do artista teriam condições de dominar plenamente, com nexos nem tão imediatos entre si, mas conotando claramente certa forma de conflito em relação a várias esferas da vida profissional daquele homem: ora a “orquestra”, ora o “mundo da arte”; ora o “mundo musical”, e enfim, aquele que foi de certo modo o auge da apresentação. Numa frase que eu estava a princípio incapacitado de compreender, mas que conservava um momento inequívoco de tensão, dizia o artista: “Ouvir dizer que é muito simples contratar a Soft Orquestra – basta apenas lhe oferecer pão com mortadela – equivale a dizer que se pode contratar você, médico, dentista, advogado, administrador, professor etc., por umas duas bananas”. Insinuava-se aí alguma forma de réplica, pelo que pude supor, cujo surpreendente desenlace veio em seguida: abandonando o microfone, o artista seguiu até o fundo do palco, em direção ao Presidente da Câmara, e disse a plenos pulmões, entregando-lhe um presente: “Ainda bem que nem todo mundo pensa assim”. Foi este um momento de aspecto catártico, acompanhado de aplausos (embora a princípio um pouco tímidos), por parte do público. Seguiram-se então agradecimentos, e a mensagem de que, sendo parte do título de cidadão devida aos trabalhos do artista em sua orquestra, ele dividia agora suas honras com todos os demais músicos.

Atentando para a sucessão dos conteúdos aí expostos, percebe-se que a estratégia geral do discurso do artista opera num movimento simétrico e oposto ao do músico. Partindo de uma situação inicial de “indiferenciação” em relação ao mundo (“Nascemos analfabetos...”), a primeira metade da performance narra uma progressão crescente rumo à consolidação de sua personalidade como algo independente, singular em relação às demais pessoas. A força motriz dessa mudança é posta (e representada) justamente como a capacidade de fazer escolhas, que vai se acentuando ao longo da biografia, e culmina na opção pelas atuais atividades que o sustentam. Da imposição inicial de um conjunto de marcadores (classe, família, cultura...), passa-se à escolha deliberada da assunção de determinados papeis sociais (artista, músico). A transição da “indiferenciação” do indivíduo à sua “diferenciação” dá-se, pois, como transição de um contexto de heteronomia a outro de autonomia. É esse o ponto de partida da segunda metade da apresentação, que podemos interpretar como a narrativa da passagem, mediada pelo conflito e pela luta, de um estado de autonomia não-reconhecida, para outro em que essa singularidade e força de vontade pessoais são finalmente agraciadas com o reconhecimento público, o título de cidadão honorário. Ao contrário do músico, a ênfase da “explicação” biográfica sobre essas mudanças não recai sobre o contexto de estar na cidade, mas sobre as atitudes individuais do artista – por vezes, aliás, em oposição visível ao contexto (profissional) que o circunda. O discurso termina, como no caso anterior, com a aceitação da honraria que lhe foi concedida, mas delimita uma relação diferente entre “indivíduo” e “sociedade”, em que as qualidades singulares do homenageado se preservam, ao invés de serem diluídas no denominador comum da condição de cidadão. Uma síntese breve desses momentos consta na Figura 2.
Figura 2 – Percurso estrutural dos discursos dos dois homenageados
Figura 2 - Percurso estrutural dos discursos dos dois homenageados

Tudo isso são hipóteses preliminares, que elaborei a partir do que me era acessível nos instantes iniciais da investigação. Elas lidam com os discursos de um ponto de vista imanente, sem a preocupação de remetê-los a um contexto maior. Situam-nos num momento específico da sucessão de etapas que compuseram a sessão solene, mas não explicam propriamente o que produz essa diferença notável entre uma apresentação e outra, nem apontam as decorrências concretas dela para a continuidade da cerimônia. Foi na tentativa de esclarecer essas questões que dei um segundo passo na elaboração da análise, em direção a uma abordagem de inspiração livremente hermenêutica, com enfoque diacrônico. Pareceu-me claro, tendo esboçado os quadros anteriores, que uma justa compreensão do que conduzia à existência da performance, tal como a presenciei na Câmara Municipal, exigia uma reconstrução de sua história, que a enquadrasse como um momento particular, dotado de posição própria, no interior de uma cadeia de eventos. Definir essa posição envolveria distinguir os motivos que conduziram à apresentação, os efeitos que ela tencionava produzir, e a maneira como, no limiar entre esses dois aspectos, despontou a estrutura particular que expusemos até agora, como algo dotado de um sentido próprio. Tratava-se, pois, de considerar aquela apresentação como um processo no tempo, orientado por determinadas intenções, e partindo de determinações a que provavelmente uma única pessoa teria acesso: o próprio artista. Assim, procurei contatá-lo, e realizamos uma bateria de três entrevistas, sucessivamente atualizadas pelas elaborações que o material de cada conversa anterior me permitiu realizar. O processo de construção dos argumentos seguintes foi, em grande medida, feito na continuidade de nosso diálogo. Minhas hipóteses e interpretações parciais foram expostas e debatidas conjuntamente com ele, o que permitiu expandi-las com bastante segurança. Eis, pois, as minhas impressões finais.

Tempo individual e tempo social
O homem de quem tanto viemos falando é Jerci Maccari, pintor e violinista nascido no Sul do país, que migrou para Valinhos em 1970, e desenvolveu, desde então, ao lado de outras atividades, aquelas de natureza artística, que foram as preponderantes em sua nomeação como cidadão honorário . De saída, a orientação dada por Jerci à sua performance (artística) me instigou, não apenas em função das contradições que delineava em relação ao processo da sessão solene, mas também porque evocava, de maneira bastante literal, a definição de “performance” (social) dada por Turner, segundo a qual: 
man is a self-performing animal – his performances are, in a way, reflexive, in performing he reveals himself to himself. This can be in two ways: the actor may come to know himself better through acting or enactment; or one set of human beings may come to know themselves better through observing and/or participating in performances generated and presented by another set of human beings (1988:81). 

De fato, a execução de um “teatro da própria vida”, se assim pudermos chamá-lo, pareceu-me um registro claríssimo da reflexividade que Turner atribui às execuções de performances sociais: tanto porque, de um lado, Jerci baseava-se necessariamente em um esforço de racionalização e elaboração da própria biografia, quanto porque, de outro, esforçava-se por incitar um movimento parecido em seus espectadores. Durante o processo de criação de sua performance, ele afirmou ter conjecturado: “Eu quero que pensem naquilo que eu vou dizer”. A ideia de uma exposição pública da própria história, que antes avaliei em termos de função no interior da estrutura do ritual, tornou-se então o eixo hermenêutico que orientou minha investigação. Reconstruir a história da performance de Jerci exigia compreender, do ponto de vista dele, qual era o sentido de contar sua vida durante a sessão solene – isto é, que efeitos aquilo procurava produzir.

A escolha dessa perspectiva forçou-me a tomar uma decisão. Se eu me propunha a contar a história daquela apresentação, era preciso decidir qual exatamente era o tempo em que ela transcorria. Entrevistando Jerci, meu olhar recaía sobre o tempo de seu cotidiano, o de sua vida privada, por assim dizer. Por outro lado, toda a minha hipótese preliminar parecia orientar-se por uma cronologia de outra ordem: aquela referente à vida pública, que englobava a cerimônia daquela noite como uma dentre outras, a que eu não tive acesso, mas que compreenderiam uma narrativa própria, se tomadas como objeto. O ponto de vista da cerimônia e o ponto de vista do homenageado pareciam conflitar. Como resolver essa questão?

A tradição antropológica percebeu, há muito, um vínculo entre a noção de rito e a noção de tempo, possibilitado pelo caráter periódico desse tipo de atividade social. O desenvolvimento teórico desse nexo se deu de variadas maneiras. Em Durkheim (1996), as cerimônias públicas são a própria fonte da categoria abstrata de tempo; elas fornecem, na cadência de sua sucessão, o substrato de experiência (social, não individual) do qual se derivou originalmente essa figura basilar do pensamento. Desde os primórdios da humanidade, então, “o que exprime a categoria de tempo é um tempo comum ao grupo, é o tempo social, se assim se pode dizer” (1996:500). Eliade (1992), por sua vez, pensa nos ritos como uma espécie de máquina do tempo, capaz de transportar seus integrantes para uma época que já não é a da vida cotidiana, mas sim a dos primórdios do mundo. Nas celebrações de ano novo primitivas, os indivíduos passam a ser os criadores de sua época: reproduzindo os movimentos da cosmogonia, eles integram o processo de surgimento do universo, promovendo uma “regeneração do tempo” (1992:56), um retorno aos instantes iniciais do cosmos, e à sua condição de sacralidade primeva. O que está em primeiro plano, em ambos os casos, é algo como um conceito fenomenológico do tempo coletivo, que redunda, em Durkheim, na criação de uma categoria abstrata do pensamento, e em Eliade, na percepção do tempo ritual como algo descontínuo em relação ao cotidiano, mas não se descola nunca de uma experiência consciente, garantida pelo próprio ritual.

O problema com que eu me confrontava exigia um deslocamento dessa ênfase sobre o tempo coletivo, para algo localizado sobre a biografia de um único sujeito; mas não podia abdicar completamente de situá-lo em uma espécie de cronologia “pública”, pois era no interior dessa cronologia que ganhava pleno sentido a própria ideia de um discurso sobre o título de cidadão. A solução a que cheguei para esse dilema partiu de Dilthey (2010), autor que retomei de leituras muito antigas, por recomendação do próprio Turner (cf. 1988:84-98). Ali se encontra o que eu gostaria de denominar um conceito fenomenológico do tempo individual. Já não se trata de conceber essa categoria do ponto de vista formal de Durkheim, nem de referir-se com ela, como faz Eliade, à cronologia mítica comum a todas as pessoas do grupo, mas de tomá-la como algo que registra a experiência de um sujeito particular. “O tempo”, segundo Dilthey, “existe para nós em função da unidade sintética de nossa consciência” (2010:169). Ele é experimentado “como o avanço incansável do presente, um avanço no qual o presente se torna incessantemente passado e o futuro, presente” (2010:170). O presente é, então, “o preenchimento de um momento temporal com realidade, ele é realidade em oposição à lembrança ou às representações do porvir que surgem no desejo, na expectativa, no temor e no querer” (2010:170).

Essa construção da ideia de tempo aplica-se exclusivamente ao percurso (e à percepção) da vida individual. Ela seria capaz de dar conta de uma análise voltada apenas à perspectiva de Jerci, mas não de resolver a questão da “cronologia pública”, com seus períodos e funções próprios. O que eu gostaria de sugerir é que é possível conciliar essas abordagens, se nos distanciarmos de uma definição fenomenológica do tempo coletivo – preservando, entretanto, aquela concernente à biografia dos sujeitos particulares. Na concepção diltheyana, o que torna possível a ideia do tempo é a unidade do sujeito individual, que assimila sua passagem segundo uma faculdade específica: a de apreensão do significado do que se experimentou, no interior de uma trajetória. “Aquilo que, no fluxo do tempo, forma uma unidade na presença, porque possui um significado uno, é, assim, a menor unidade, a qual podemos designar como vivência” [grifo meu] (Dilthey 2010:171). A progressão da vida desponta, então, como progressão de vivências, que vão formando unidades cada vez maiores de significação. O tempo é o meio em que se dá a conexão entre as vivências, aquilo que estipula o sentido do todo experimentado; e ele o faz justamente por sua capacidade de transportar objetos da consciência – afetos, volições, representações – de um instante a outro, relacionando-os entre si segundo algumas categorias chave: “valor, finalidade, sentido e significado” (Dilthey 2010:177). Ora, o que pretendo denominar o “tempo coletivo” em que se dá a cerimônia solene não se fundamenta sobre um “sujeito coletivo”, tal como poderia sugerir Durkheim; tampouco se refere à relação entre as volições ou afetos de um conjunto de pessoas no transcurso da vida pública – donde a impossibilidade de remetê-lo a um equivalente social da “vivência” particular. Aquilo que é efetivamente “transportado” e “relacionado” na sucessão de ritos cívicos, que suponho virtualmente participante de minha análise, não é da ordem dos conteúdos do psiquismo, mas sim das formas sociais de simbolização e valoração dos sujeitos que participam daquelas atividades. Perante o indivíduo, o rito aparece como vivência dotada de significado e valor próprios, em função de sua visão de mundo pessoal. Perante o rito, porém, cada indivíduo é, ele mesmo, signo e valor, de acordo com sua atuação, e com a relação de maior ou menor identidade entre ela e aquele curso previsto da ação, cuja expressão última é a estrutura processual da cerimônia. O evento a que nos dedicamos, por exemplo, concebe Jerci e o músico como indivíduos que, submetidos à progressão de etapas da sessão solene (...cantar o hino, receber o título, discursar, ouvir o discurso dos políticos...), passam da categoria de não-cidadãos para a de cidadãos honorários, valorando essa nova condição segundo um status específico. A estrutura processual do rito é dotada de um sentido próprio, dado justamente pela operação dessa transformação. Aquilo que eu pretendo chamar “tempo social” é constituído pelo conjunto de processos que, como esse, têm a faculdade de operar transformações (ou atualizações) públicas da significação e da posição dos indivíduos, segundo quadros normativos e simbólicos específicos. Situado na perspectiva do tempo da cerimônia, o observador não apreende “experiências” subjetivas que se ligam entre si, mas estruturas que condicionam as experiências individuais, e se relacionam mutuamente conforme o sentido das transformações que pretendem empreender. A performance de Jerci pode ser então contemplada, não como algo pertencente a uma cronologia única, mas como objeto que se forma no cruzamento de dois tempos: um individual (Ti), regido pelos valores, vivências e finalidades do artista, e outro social (Ts), regido pelos sentidos e funções a que os processos da vida pública atendem. No curso desse tempo social, consolidam-se estruturas processuais regulares, dotadas de estruturas sociais e simbólicas, que podemos abstrair por comparação, mas são suscetíveis de transformação na história. Na Figura 3, busco representar essa maneira de conceber a situação. Os círculos (O) que acompanham o eixo Ts representam a progressão de cerimônias a que não tive acesso, e que completariam a análise, em uma situação ideal. Projeto, acima e abaixo da figura, as duas menores unidades analíticas de que faço uso no decorrer da exposição: a estrutura processual da cerimônia (C), e a da própria performance (P), como objetos que deveriam ser contemplados, numa apresentação completa, do duplo ponto de vista do tempo social e do individual. Cada avanço do interior de uma unidade menor para uma maior constitui um avanço em direção a um novo contexto de significação, onde pode avançar a compreensão do ocorrido. A localização dos fatos no tempo individual define sua posição, no interior da história que pretendemos narrar, como motivos, efeitos, ou como o próprio fato da performance, em sua estrutura particular.

Munidos desse esquema, podemos finalmente avançar à narrativa da história da performance, com a segurança de havê-la situado bem em relação às alternativas possíveis de análise. Nossa conclusão final seguirá no sentido de vincular a análise preliminar, que trabalhou a performance do ponto de vista do tempo social, à entrevista de Jerci, que atualizará nosso conhecimento do conteúdo de sua apresentação na perspectiva do tempo individual.

Figura 3 - Esquema analítico da performance de Jerci

História da performance
Jerci sintetizou o mote da criação de sua apresentação em uma frase: “Eu queria impactar”. Tudo aquilo que reunimos sob a categoria dos “motivos” que conduziram à execução da performance pode ser organizado como uma elucidação desse pequeno conteúdo. Vejamos como as coisas sucederam.
 
Quando o artista foi informado de que receberia o título de cidadão honorário, já conhecia a natureza dessa honraria, e da cerimônia em que ela é entregue. "Eu sabia, porque eu já tinha visto a entrega de outros títulos; (...) tinha pleno conhecimento sobre o que significava um título, ou seja, quem era merecedor” dele. A informação veio como uma surpresa: “Nem passava pela cabeça que um dia eu pudesse ser objeto de avaliação para receber tal título”. A Câmara Municipal gravou uma entrevista extensa, que rendeu o material daquele vídeo exibido no telão, mas deu poucas informações, além disso. Jerci me disse que “não houve nenhuma comunicação oficial” sobre os motivos da cerimônia; tampouco foi ele informado, a princípio, sobre os trajes que deveria utilizar. E, o que é o mais interessante para nós: nada havia sido dito sobre o intervalo para discurso. “Oficialmente, eu não fui avisado que eu tinha que discursar. Mas como eu conheço o processo eu sabia que ia ter que falar, então nem precisaram me avisar.” A preparação da performance deu-se, portanto, com plena ciência do que deveria ocorrer no evento, e foi planejada nos mínimos detalhes.

Jerci cultivou por dias a ideia de que deveria impactar o público, sem chegar a nenhuma formulação definitiva. Então lhe ocorreu, durante a leitura de um livro – Isso é arte?, de Will Gompertz –, um lampejo que resolveu seu problema imediatamente. Quando perguntei o que o havia levado a decidir pelo formato final da apresentação, com atuação e discurso, o artista me disse: “eu estava lendo justamente o capítulo do pós-modernismo. O pós-modernismo é uma miscelânea de tudo que tinha acontecido até então. (...) Imagina a minha cabeça: explodiu. Achei a alavanca que move o mundo, achei a saída ou a solução para o meu discurso. Vai ser um discurso performático. Foi nesse momento que eu descobri o que eu queria fazer.” Rapidamente, após essa conclusão, o artista lançou uma primeira versão daquilo que realizaria na Câmara. “Eu sentei, acho que em 10 minutos eu redigi, pensei, fiz, (...) e depois eu submeti à análise crítica do Fábio”, um amigo que se encontrava por perto. O roteiro foi revisado após essa análise, mas não sofreu nenhuma alteração substancial. Todo o essencial veio à tona ali, naquele instante criativo.

Havia, porém, um problema: o artista hesitava quanto à sua capacidade de pôr aquilo em prática. “Eu ainda não tinha decidido se eu (...) teria coragem suficiente pra encenar aquela performance que eu tinha idealizado, que eu tinha feito o roteiro, com fala e com cena”. A indecisão perdurou até dois dias antes da sessão solene, quando alguma coisa deixou Jerci irritado. Ele não soube me dizer exatamente o que foi aquilo, nem mesmo o assunto a que se referia. Tudo de que se lembrava é que algo o havia incomodado: “e foi a partir daquele momento que eu falei: agora eu vou apresentar, sim. (...) E vou com o papel na mão, que é pra não cometer gafe”. O artista não percebeu esse lapso de memória como algo muito danoso para minha narrativa. Pois não interessava tanto saber o que havia exasperado: qualquer coisa poderia tê-lo feito, e o resultado seria o mesmo. Jerci contou-me um pouco de sua psicologia: “Basta me incomodar. (...) O melhor estímulo pra mim é o desafio. Ou seja: duvide da minha capacidade que aí eu faço, aí eu viro de ponta cabeça qualquer coisa pra chegar naquele objetivo”. O incidente desconhecido foi, portanto, o passo final para a execução da apresentação na Câmara.

Mas porque, afinal, a ideia de fazer algo diferente era tão importante? A isso, Jerci respondeu-me em termos de sua identidade pessoal. “Eu sou um artista plástico. E eu não quero ser um artista plástico, digamos, que seja um cara comum, com falta de criatividade. (...) Eu quero mostrar, já que eu ganhei um título também por causa desse trabalho – eu tenho que mostrar que também nesta hora eu continuo sendo artista plástico, e continuo fazendo juz à conotação de: ‘o artista plástico é criativo’ – e eu acho que tem que ser criativo”. Daí não só a ideia geral de algo que fugisse do comum, mas também aspectos como o traje informal. Jerci deliberadamente escolheu utilizar aquelas roupas, o que ficou demonstrado já na ocasião, pelo fato de que ele dispunha de um terno, utilizado em seguida na apresentação de sua orquestra. "Eu que perguntei”, disse-me ele, “se tinha alguma orientação sobre como a gente deveria se apresentar, e eles disseram: 'não, você fique à vontade, você venha do jeito que você quiser'. E foi daí que eu falei assim: ‘bom, já que eu posso ir do jeito que eu quiser, eu vou do jeito que eu sempre me visto: como artista’”. Era um quadro que ia se formando para dar o caráter desejado à performance.

A própria escolha da ocasião da entrega do título como momento para execução de sua ideia não foi casual. “Não tinha outra situação melhor do que essa para fazer essa performance impactante”, afirmou Jerci. O artista julgava que o efeito “não seria o mesmo se eu fizesse isso em qualquer outro lugar”. E isso porque, “naquele momento, eu era o destaque, naquele momento, eu estava sendo homenageado, então (...) eu tinha que fazer juz ao título e falar assim: realmente o título foi merecido, e realmente ele é um artista, porque ele é um artista que provou que faz a coisa de forma criativa”. O conteúdo de sua ideia era, de certo modo, muito mais orientado por sua própria concepção do que é fazer arte, do que pelo fato indistinto de que sua produção havia sido reconhecida.
Fazendo livre uso das categorias auxiliares que lancei na introdução deste artigo, poderíamos dizer que, até aqui, temos elementos suficientes para compreender o percurso histórico de duas características da apresentação de Jerci: primeiro, a ruptura da regularidade da ação que ela promove no interior da cerimônia, dado que admitamos, como fez o artista, que uma encenação como aquela é algo que escapa às expectativas do momento. Em segundo lugar, a quebra com a regularidade da significação ali atuante: pois, quanto mais avançava a performance, mais sua linguagem se distanciava do “sistema de símbolos públicos” de Geertz, aproximando-se de uma exposição que só se compreendia com limitação e esforço – tanto maiores quanto mais o espectador se encontrava distante do contexto da vida íntima de Jerci. O simbolismo da apresentação do artista era, em alguma medida, uma linguagem privada. Ele mesmo pareceu surpreender-se com as decorrências desse fato, na posteridade da cerimônia. “Eu deduzi que a grande maioria poderia sacar o que estava rolando, porque tinha uma grande maioria lá que me conhece, e conhece um pouco ou bastante da minha história. (...) Mas, me surpreendeu bastante, ao saber depois, que o efeito foi o contrário”. Isso nos conduz, ainda em termos da preparação da performance, à questão de saber: quem era o público suposto por Jerci?

O artista havia convidado, por meio de um evento no Facebook, aqueles que gostaria que o presenciassem. Os públicos efetivos a que se dirigia a performance, entretanto, eram variados, excedendo inclusive os que estavam fisicamente presentes no local. “Nem todo mundo que eu queria que estivesse lá, estava”, disse-me o artista, “Mas eu também sabia que essas pessoas muito provavelmente (...) estariam vendo tudo aquilo pela TV Câmara. Como eu não as encontrei, não sei o que entenderam, mas espero que tenham entendido alguma coisa”. A apresentação portava um conjunto de mensagens, com destinatários bem delimitados, e operava na tensão entre o direcionamento mudo do que era dito a essas pessoas, e o fato de que Jerci, apesar de tudo, “queria que (...) todo mundo que estivesse lá compreendesse”. Daí o caráter marcadamente alusivo, principalmente da segunda metade da performance. Ela falava com muitos interlocutores, apostando em que eles se reconheceriam como tais, sem a necessidade de um recurso fático direto. A tarefa de detalhar os componentes desse diálogo múltiplo nos levará a uma compreensão final dos elementos constituintes do roteiro do artista.

Toda a metade “biográfica” da apresentação dirigia-se, segundo Jerci, a um público geral, sem interlocutores específicos. A opção pela ênfase sobre a evolução de sua vida profissional devia-se a um motivo simples: o artista “queria enfatizar apenas o objeto da homenagem”, isto é, o trabalho como músico e como pintor. O percurso da representação seguia, a partir daí, numa espécie de maiêutica, em que o público era incitado a refletir sobre sua própria vida, a partir do vislumbre da trajetória do artista. “Nascemos analfabetos”, dizia a primeira sentença da atuação: era, de fato, como em minha hipótese inicial, a indicação de uma forma de indistinção coletiva. Jerci queria que as pessoas refletissem sobre isso quando, em seguida, pôs-se em silêncio, a cabeça baixa, as mãos timidamente unidas em frente à barriga. A súbita interrupção de seu discurso insinuava um espaço para o que o artista denominou “uma espécie de exame de consciência”. “Quantas daquelas pessoas presentes”, disse-me o pintor, “nasceram analfabetas? Todas. Quantas não escolheram as famílias onde deveriam nascer? Todas não escolheram. Mas um monte delas que estavam lá foram privilegiadas pelo destino, pelo acaso, e nasceram em famílias privilegiadas”. Tratava-se de proporcionar, na surpresa do silêncio, uma espécie de incitação à autorreflexão, por parte de cada pessoa ali presente.

Esse movimento se repetiu pouco depois, após mais uma sentença breve: “Cresci. Fui à escola”. O silêncio, desta vez, não era acompanhado de um olhar direcionado ao chão. Jerci encarava o público, em sua quietude. Queria que eles pensassem: “Mas em que escola eu fui? (...) Quantos que estavam ali foram à escola, e em que escola foram?”. A performance começava já a delinear os traços de uma distinção entre Jerci e as demais pessoas. Pois aquele momento da vida “também não é uma escolha: você tem que ir pra escola” – mas a diferença entre a instituição que ele frequentou, no mundo rural do Sul do país, e as que as demais pessoas presentes haviam conhecido, lançava já as bases de uma futura divergência entre os destinos de cada um.

Esse contexto de imperativos sociais ganhava, na frase seguinte, um cenário particular: “Meu mundo se chamava Sessão São Miguel, onde estavam a minha família, amigos, os meus sonhos, no meio de uma paisagem estonteantemente bela, ora muito fria, ora muito quente”. Jerci pretendia com isso situar sua narrativa em um local específico. Sucedia então a série de atos que narrei na análise preliminar. Jerci se ajoelhava, pintava, posava com seu instrumento musical, num crescendo cujo principal contraste, em relação aos momentos anteriores da encenação, era justamente aquilo que eu havia destacado em minha hipótese: o fato de que o artista havia escolhido tornar-se aquilo que se tornou. Tudo isso, para o pintor, supunha-se acompanhado de uma reflexão por parte do público. “Quem fez escolhas? Você fez escolhas, ou você deixou ser escolhido? Foi você que escolheu? (...) Você foi capaz de escolher? Você teve peito pra encarar esse tipo de coisa? (...) Eu escolhi. Eu decidi. Quantos de vocês decidiram? (...) Eu escolhi ser artista”. Por trás do ideal de artista, um segundo valor presidia a concepção de Jerci sobre sua própria vida, e a maneira como ela se contrapunha à das demais: o valor da autonomia, como responsabilidade sobre as próprias decisões e capacidade de levá-las às suas últimas consequências. Embora supondo uma compreensibilidade geral do que fazia, Jerci já se contrapunha aqui, de certo modo, a um público específico: nem tanto a uma pessoa ou grupo, mas a uma postura que ele valora negativamente. “Eu canso de ouvir”, contou-me o pintor: “estou fazendo tal coisa porque essa coisa dá dinheiro; estou fazendo essa coisa porque é meu pai que quer. Ou seja: a pessoa não tem vontade própria, ou capacidade de decidir: ‘não, eu quero ser assim’”. Para ele, ponderar sobre esse assunto equivalia a fazer a seguinte questão: “aquilo que você está fazendo te deixa feliz?”. A vida profissional concebia-se, portanto, como esfera de autodeterminação de si, em que a felicidade corresponde à perseguição ativa dos próprios ideais, em detrimento das pressões sociais.

Toda a segunda metade da performance foi construída como um diálogo com as várias pressões que Jerci sofreu ao longo da vida. Ela abria com um sentença densa: “Uma trajetória, uma carreira, qualquer que seja, não se constrói do dia para a noite. Muito menos sem sacrifícios, renúncias, angústias, tropeços, críticas, decepções. Só os determinados, os obstinados, alcançam seus objetivos.” Aí se explicitava o que acabamos de dizer: o interlocutor de Jerci era a postura da preguiça, ou da incapacidade de sustentar as próprias decisões. “Tem gente que é imediatista”, disse-me ele – e era a essas pessoas que se dirigia aquela parcela da mensagem. A realização da própria felicidade, das próprias vocações, se assim for possível dizer, exigia uma dedicação contínua por parte do diletante, que só sobrevivia se não cedesse às dificuldades. Lançada esta chave semântica, o discurso seguia em um bloco de quatro contraposições bem marcadas, correspondentes àquela parcela sua em que houve o acúmulo de uma forma de tensão, conforme minha descrição inicial. Vejamos como isso se organizou.

O primeiro diálogo de Jerci tomava a audiência da orquestra como interlocutor. “Formar e gerenciar uma orquestra”, dizia o artista na Câmara, “é semelhante a educar um filho. Renuncia-se à individualidade, perdem-se noites de sono. O filho e a orquestra têm vontades próprias, e são feitos de pessoas. A orquestra é feita de pessoas diferentes umas das outras, que regularmente precisam de um norte, de uma direção”. A assunção implícita da figura metafórica do pai apontava, então, para as dificuldades do trabalho de coordenar o trabalho com os músicos. Jerci contrapunha-se àqueles que não valorizam seu trabalho como presidente da orquestra, reafirmando a importância de seu papel para o desenvolvimento daquele trabalho.

Vinha em seguida uma menção a um contexto social mais amplo. “O mundo da arte é cruel. Primeiro massacra, ou tenta; não conseguindo, passa a valorizar, percebendo que está diante de um destemido, forte, que não teme desafios”. Aqui o tema da obstinação voltava, direcionado a um interlocutor que Jerci identificou para mim como “o poder público”. Inserido no meio artístico já há várias décadas, o pintor explicou-me as circunstâncias que motivavam sua sentença. “O mundo da arte é seletivo, altamente seletivo”: pressiona os que ainda não se estabeleceram nele a recuarem, desistirem. Há pouco suporte público (particularmente governamental) para a manutenção das práticas artísticas. Jerci queria dizer, então, conforme um trecho de nossas entrevistas: apesar das adversidades, “eu venci, quando tentaram me massacrar”. Ele havia sobrevivido àquelas dificuldades.

No interior do que Jerci denominou “o mundo da arte universal”, recortava-se um meio profissional particular, objeto da terceira sentença dessa série de statements. “O mundo musical tem as suas peculiaridades. Há aqueles que imaginam ser melhores do que realmente são, de difícil trato, e há os que realmente que são bons, e de fácil trato”. Era um recado, não apenas para os músicos de sua própria orquestra, mas para os músicos em geral do ramo. O artista contrapunha-se àqueles de postura soberba, que dificultavam seu trabalho como presidente, por não saber reconhecer suas limitações. A frase foi acompanhada de um último momento de silêncio, em que, deixando o microfone de lado, o artista sentou-se à beira do palco, olhando a plateia enquanto sorria. Ali se encontravam, naturalmente, vários de seus colegas de profissão. Mais uma vez, a intenção era a mesma: “quero provocar uma reação na plateia”. Para Jerci, “o que é bom é difícil”, e ele gostaria de incitar uma última reflexão: “se eu consegui, não é porque sou gênio, mas porque sou determinado”. O terreno estava preparado, então, para o último movimento da perfomance – aquele da fala referente ao “pão com mortadela”, e o subsequente desenlace da apresentação, com a entrega de um presente ao Presidente da Câmara.

O artista explicou-me esses dois momentos da apresentação. A menção ao pão com mortadela replicava uma sentença, que havia corrido no meio musical, insinuando que a Soft Orquestra era fácil de contratar, que tinha um trabalho de qualidade medíocre. A intenção daquilo era, uma vez mais, contrapor-se aos que não valorizavam a atuação profissional de Jerci (e agora, também de seus colegas músicos). A opção pela entrega do presente ao Presidente – afirmando, lembremos, que ele constava entre aqueles que “não pensam assim” – era na verdade retribuição a uma colaboração passada entre ele e a orquestra. A Soft havia obtido, por iniciativa do Presidente, uma lei que a institucionalizava como sociedade de utilidade pública. Jerci agradecia, então, antes o legislador que o Presidente, sendo sua posição atual na Câmara algo secundário no planejamento inicial da performance. O movimento seguinte, de agradecimento e partilha do título com os músicos da orquestra, nada mais era do que a continuação dessa retribuição. Jerci codificava a honraria como algo vindo de duas fontes. De um lado, sua iniciativa pessoal como artista plástico; de outro, o trabalho com a orquestra, que tornava justa, afinal, a dedicação das honras a todos os demais participantes daquele empreendimento. Este era um caso em que a responsabilidade sobre os próprios ideais não podia ficar restrito à atuação individual, e as consequências positivas daquilo estendiam-se, consequentemente, a todos os demais envolvidos.

Tendo encontrado a intenção primeva de cada parcela da performance, podemos realizar uma síntese. A autobiografia, segundo Dilthey, é a forma mais elevada e mais instrutiva, na qual a compreensão da vida vem ao nosso encontro. Aqui, um transcurso vital é o elemento manifesto, algo que aparece sensivelmente, a partir do qual, então, a compreensão se aproxima daquilo que produziu esse transcurso vital em um meio social (2010:178). 

Estamos, no caso de Jerci, diante de um fenômeno que expressa – para retomar Turner –, não apenas a capacidade reflexiva de um homem sobre suas relações com a sociedade em que se insere, mas também uma espécie de réplica, em que a cada momento (os instantes de silêncio, as frases alusivas) se cobra do público – da sociedade em geral – um movimento correspondente de reflexão a respeito de si mesmo. O aspecto combativo do texto do artista excedia, ao menos segundo suas intenções, aquela função do discurso do homenageado, que apontamos na análise preliminar. Mais do que situar o indivíduo em relação à coletividade, exigia que a coletividade se situasse em relação a ele, fazendo uso de um veículo (a performance enquanto tal) que, por sua própria natureza inesperada, cria-se capaz de criar as condições para um estranhamento, um exame. A abertura de um espaço de fala no interior da esfera política municipal tornou-se, pois, como que um acesso a todos os demais circuitos públicos de que Jerci faz parte, importando menos a presença concreta dos interlocutores a que ele se dirigia, e mais a concreção, naquela ocasião específica, de sua mensagem. Para usar uma frase que surgiu em entrevista: “o recado foi dado”.

Não deixa de ser interessante notar que, se observamos a estrutura da atuação, ela percorre algo muito similar à estrutura do “drama social” de Turner (cf. 2008:33-37). A sentença sobre a carreira, no início da segunda metade do discurso, promove certa forma de “ruptura”, ao que se segue uma “escalada da crise” conforme o artista vai se contrapondo a seus vários interlocutores sociais. A entrega do presente ao Presidente da Câmara opera, por si só, como uma espécie de “ação corretiva”, ao que se segue uma “reintegração” do artista ao conjunto da sociedade, conforme ele faz seus agradecimentos. Continua válida, entretanto, a diferença que apontei entre seu discurso e o do músico. A assimilação de Jerci pela comunidade valinhense já não se dá, no interior do jogo simbólico executado por ele, como mero retorno a uma situação anterior. Ela produz uma nova posição estrutural para o artista, que apenas em seus últimos instantes converge com aquilo que o rito, por hipótese, espera dele, sem com isso apagar o fato de que, até ali, o tema principal de sua vida não é o da benevolência generalizada, mas o da luta e o da abnegação. Uma curiosa analogia se estabelece, portanto, entre o desfecho dos processos políticos tipificados por Turner, e o da performance que analisei. O antropólogo prevê que, ao fim do drama, “a natureza e a intensidade das relações entre as partes, e a estrutura do campo [político] total, ter-se-ão modificado” (2008:37). Similarmente, a atuação de Jerci conduz a uma nova configuração pública de sua imagem – uma nova “fachada”, para falar como Goffman (2011:13) –, ajustada – caso creiamos na eficácia daquele simbolismo todo – aos valores que o próprio pintor seleciona como estruturantes de sua biografia.

Resta, enfim, a dificuldade de saber: quais foram os “efeitos” daquela apresentação? Curiosamente, eles se prolongaram de maneira muito mais visível no interior do tempo individual de Jerci, do que no interior do tempo social do rito. A maneira como a performance dissolveu, em seus instantes derradeiros, a tensão acumulada anteriormente, deu ensejo à possibilidade de que fosse assimilada pela estrutura restante do processo cerimonial sem maiores problemas. Ela repercutiu, é claro, nos discursos dos políticos, que tiveram de lidar com a surpresa do que viram de maneira mais ou menos improvisada, mais ou menos segura. Mas isso não impediu que permanecessem fiéis à trajetória geral de um elogio dos dois cidadãos, mal fazendo referência ao ocorrido, em alguns casos. Foi algo muito mais ameno que as decorrências da recepção do público, que se manifestou perante Jerci de maneiras variadas nos dias subsequentes, levando-o a me contar que, de seu ponto de vista, a performance havia sido “totalmente bem sucedida”. Eu mesmo estive entre uma das pessoas que o procuraram posteriormente, devido à surpresa que a situação toda provocou em mim. Acompanhar esses desdobramentos, entretanto, seria tarefa para uma biografia do pintor, mais do que para um antropólogo. A questão principal que lancei na introdução, concernente à interação entre estrutura do rito e atuação individual, encontra já, nos desenvolvimentos anteriores, elementos suficientes para um desfecho.

Conclusão
Acompanhando o percurso da criação e execução das ideias de Jerci, tivemos ocasião de estabelecer uma nova relação com minhas hipóteses preliminares. A entrevista com o artista, fortuitamente, não negou nada do que eu havia formulado inicialmente, mas atualizou e expandiu o significado daqueles elementos, inserindo-os em um contexto de significação diferente: não mais o da cerimônia como tal, mas o da biografia daquele homem, e da autocompreensão que ele possui dela. A estrutura do texto percorreu, de certo modo, a de minha própria investigação, partindo do anonimato do artista na Câmara, até o ponto em que tive a oportunidade de conhecê-lo, descobrir mais sobre sua história, e travar os diálogos que conduziram às conclusões da última seção. Esse movimento subsume-se, afinal, à figura clássica do círculo hermenêutico, em que se procura infinitamente “a visão do singular no todo, e a visão do todo a partir do singular" (Coreth 1973:79). Não o percorri completamente, pela impossibilidade de levar a cabo uma análise interior ao que denominei o “tempo social” da cerimônia, que nos levaria em direção ao sentido da nomeação daquelas duas figuras como cidadãos, e a posição desse fato no interior de uma série de outros processos similares. Com a distinção entre essa perspectiva e aquela centrada no “tempo individual”, quis esboçar uma prerrogativa teórica que, segundo creio, poderia levar a uma conciliação final entre ênfases conflitantes da análise antropológica. O pano de fundo de minha asserção é a ideia que esbocei na apresentação de meu esquema analítico: fazendo teoria, o observador oscila entre os pontos de vista de dois “complexos hermenêuticos”, produtores de significados e valores diferentes. O indivíduo é signo e valor aos olhos da atividade em que se insere; mas também a atividade significa e é valorada pelo indivíduo. Nesse sentido, poderíamos reduzir a tensão produzida pela atuação de Jerci no interior da cerimônia a uma contradição entre o valor estrutural atribuído a ele pela circunstância do rito, e o valor atual do recebimento do título para o artista. A diferença entre seu discurso e o do músico é a diferença entre uma consciência que se reconhece (ou se declara publicamente) como consonante à ordem social que a incorpora, e outra, que vê-se agora agraciada pela mesma estrutura de poder com quem teve de lutar a vida toda, para conseguir o que desejava. Um desvio do corpo simbólico e normativo usuais torna-se, então, recurso para executar um statement político, planejado também com consideração à estrutura da ocasião, mas movido, de outra parte, por elementos atinentes exclusivamente à personalidade de Jerci: o ideal de artista, a relação entre vontade e desafio, a compreensão da vida como sucessão de escolhas, perseguição de vocações. Estudar a interação entre esses componentes da personalidade, e tudo aquilo que na vida social limita as possibilidades da livre manifestação de si, seria uma das tarefas para o contraponto entre os tempos social e individual.

Ao lado de todos esses componentes rígidos da análise, quis enfatizar, nas linhas iniciais da narrativa, o aspecto altamente contingente do que sucedeu na Câmara. Embora a performance tenha sido muito conscientemente planejada, ela veio à tona num lampejo criativo, dependente da leitura ocasional do capítulo de um livro, e posteriormente da existência daquele momento de exasperação, que motivou Jerci a tomar coragem de apresentar o que havia escrito. A eliminação de qualquer um desses fatores poderia ter levado a um destino muito diferente do que narrei. “Ao lado da categoria da realidade efetiva, que desponta para nós no presente, emerge aqui a categoria da possibilidade” (Dilthey 2010:171). E o que vale para a execução da performance estende-se, naturalmente, para todos os elementos que configuram a situação “regular” do rito. Cada participante da cerimônia vive ali a simultaneidade daqueles dois tempos, e a interação dos processos interiores a cada um deles corre sempre o risco, mais ou menos provável, de interferir no andamento planejado da atuação. Nesse encontro de processos, curiosamente, os aspectos estruturais, emulados por minha análise preliminar, não perdem seu valor analítico. Eles registram, de alguma forma, os vestígios dessa interação; deixam marcas que insinuam o solo em que cresce o fenômeno observado. “Heteronomia e autonomia”, “não-reconhecimento e reconhecimento”, são afinal o registro de algo que ocorre no interior de dois mundos.  No tempo individual, codificam o significado da cerimônia perante o artista, segundo o sentido que ele atribui à performance; no tempo social, codificam o significado de suas palavras perante a estrutura processual, segundo a função que ela delega ao que está sendo dito. Estipulam, pois, relações entre o singular e a totalidade, que demarcam, afinal, o que há de genuinamente antropológico na ocasião.

Referências bibliográficas
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